quarta-feira, novembro 15, 2017

Em bela homenagem, Lulu Santos ‘se apropria’ e ‘desconstrói’ Rita Lee



CD
Baby, Baby! (Universal Music)
2017

2017 seria uma um “ano sabático” para Lulu Santos [em foto de divulgação de Léo Aversa]. Sim, “seria”: a leitura da autobiografia de Rita Lee, editada no final de 2016, alterou os planos do cantor. E motivou o lançamento de Baby, Baby!, no qual regravou doze faixas da legítima rainha do rock nacional. É a segunda vez que Lulu dedica um trabalho a um outro artista: em 2013, prestou uma respeitosa homenagem a Roberto e Erasmo Carlos.

Do alto de 35 anos de carreira discográfica, não se poderia esperar que Lulu caísse na armadilha do cover – e, naturalmente, ele não caiu. Muito pelo contrário: “se apropriou” de “Desculpe o Auê”, “Baila Comigo” – embora esta não tenha necessariamente se beneficiado da mudança de compasso – e “Caso Sério”, inserindo-as na estética de “bolero havaiano” de sucessos seus como “Sereia” e “Como uma Onda”.

O mesmo vale para “Disco Voador”, que abre os trabalhos – e supera a gravação original, lançada por Rita no LP Babilônia, de 1978 – com direito a um solo de slide guitar que remete à sonoridade dos três primeiros discos do artista. Para quem não conhece a canção, soa tranquilamente como a “a música nova de Lulu Santos”. No mais, o músico se dedicou a “desconstruir” as canções de sua musa.

Famosa pela gravação de Elis Regina, “Alô, Alô, Marciano” ganhou inesperada roupagem eletrônica. O clássico “Ovelha Negra” – cujo refrão, aliás, batizou o CD –, apesar dos sequenciadores, tem uma levada de… baião (!). E o rock “Agora Só Falta Você” se transformou em um... funk melody (!). Aos críticos do ritmo carioca, uma observação: o resultado, acreditem, foi bastante satisfatório.

Originalmente dançante, a pouco conhecida “Paradise Brasil” – do álbum Reza, de 2012 – não sofreu alterações na releitura de Lulu. “Mania de Você”, no entanto, ressurgiu como um trip hop soturno, acrescido de um belo solo de guitarra. Do repertório d'Os Mutantes, a escolhida foi “Fuga nº II”, que, apesar dos timbres bem escolhidos, nada acrescentou à faixa.

Concebido com um rock a la Rolling Stones para o terceiro disco solo da cantora, Atrás do Porto Tem uma Cidade [1974], “Mamãe Natureza”, na versão de Lulu, tornou-se um blues, com a adição de discretos metais estilo “Penny Lane”. O calcanhar-de-Aquiles do disco é a (surpreendentemente) apática releitura de “Nem Luxo, Nem Lixo”, que encerra os trabalhos em uma espécie de “anticlímax”. Melhor lembrar do matador registro de 1995 de Marina Lima.

Baby, Baby! possui dois grandes méritos: a) a originalidade com que a obra de Rita Lee – que merece ser sempre celebrada e atualizada para as novas gerações – foi abordada; b) não é sempre que temos a feliz oportunidade de presenciar um vértice do “triângulo mágico” do pop nacional homenageando o outro – o terceiro chama-se Guilherme Arantes. Contudo, em se tratando de um hitmaker como Lulu Santos, um CD de inéditas seria bem-vindo: o mais recente, o regular Luiz Maurício, é de 2014.



Leia também:




Veja o simpático lyric video de “Baila Comigo:


Lulu Santos e Rita Lee: caminhos cruzados


Lulu Santos nunca escondeu que foi fã d'Os Mutantes desde o primeiro momento e acompanhou toda a carreira solo de Rita Lee. Não por acaso, a assinatura da cantora aparece duas vezes no álbum de estreia do guitarrista carioca, Tempos Modernos [no detalhe, a capa], editado em 1982.

Rita compôs o samba “Selenita”, que, durante as gravações, teve o título alterado para “Scarlet Moon”, em homenagem à então esposa do cantor, a jornalista Scarlet Moon de Chevalier, falecida em 2013. E também “De Leve”, versão do clássico beatle “Get Back” escrita em parceria com Gilberto Gil, lançada pela dupla em Refestança, gravado ao vivo em 1977.

A rainha do rock também já participou de um CD de Lulu: ao lado do marido Roberto de Carvalho, Rita gravou os backing vocais de “Ronca, Ronca”, faixa de Tudo Azul [1984], terceiro trabalho do autor de “Toda Forma de Amor”.



Ouça “Scarlet Moon”...



...e “De Leve” – observem que a gravação de Lulu é claramente influenciada pela sonoridade do The Police:

Da série ‘Certas Canções’: ‘Desculpe o Auê’, de Rita Lee e Roberto de Carvalho


Quando Rita Lee lançou Bombom, em 1983, eu ainda era um garoto. Todavia, já me interessava por música. Tanto que lembro com nitidez de ter visto, na casa de um familiar, uma edição da extinta (e mítica) revista mensal Violão & Guitarra – que trazia cifras do sucesso do momento e do passado –, cuja capa dava destaque aos dois sucessos instantâneos do álbum: “On The Rocks” e “Desculpe o Auê”. E esta chamou-me particularmente a atenção.

Na minha tenra idade, fiquei intrigado com o título. “Como ela pôde colocar uma palavra como ‘auê’ no nome da música?”, questionei à época. E por nunca ter ouvido a canção – apenas li a letra na revista de cifras –, imaginei que se tratava de mais uma faixa bem-humorada, bem ao estilo da compositora. Ledo engano.

Dias depois, ouvi “Desculpe o Auê” no rádio. E fiquei fascinado. Era uma balada belíssima que, desde então, passou a ser uma das minhas preferidas do repertório de Rita Lee. Minha única ressalva, pasmem, era o desfecho da letra.

“Como a mulher diz que vai ‘roubar os anéis de Saturno’ para o cara? Isso é absurdo!” Bobagem de criança. Com a clareza que somente o tempo proporciona, hoje vejo que o verso final é justamente o que há de mais bonito, comovente e profundo nessa faixa. 

“Roubar os anéis de Saturno” significa… fazer o impossível pela pessoa amada.



P.S.: em dezembro de 2008, compareci à gravação do especial global de Roberto Carlos, realizada no HSBC Arena. Rita Lee era uma das convidadas. No local, pensei em como seria fantástico vê-la cantando “Desculpe o Auê” ao lado de RC. Mas as duas realezas da música brasileira preferiram um medley de canções de ambos, como “Parei na Contra Mão”, “Flagra” etc.



Da série ‘Causos’: o dueto de João Gilberto e Rita Lee


Em 1980, João Gilberto preparava o seu especial da série global Grandes Nomes – que se transformaria no LP João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, lançado naquele mesmo ano. E decidiu convidar Rita Lee, com quem nunca havia tido nenhum contato, para um dueto em “Jou Jou Balangandans”.

Telefonou para Rita. Ela, no entanto, não acreditou que estava falando com o mito. Sendo assim, João lançou mão de um recurso: com seu estilo incomparável, cantou um dos sucessos da cantora “Chega Mais”. Do início ao fim. Boquiaberta, a rainha do rock se convenceu de que o seu interlocutor não era um impostor.

Insegura diante da ideia de atuar ao lado do papa da bossa-nova, Lee confessou que não conhecia a composição do grande Lamartine Babo. João, contudo, tranquilizou-a: “Não tem problema. Na verdade, é até melhor que seja assim”. Enviou para ela uma fita K7 com a música e, ao longo dos dias, telefonava para passar instruções. E fez um pedido: que Rita se apresentasse usando um vestido.

No dia do ensaio – Rita Lee, claro, estava presente –, João, com seu ouvido absoluto, percebeu um erro do violoncelista. Mesmo sem elevar a voz, deu um esporro monumental na orquestra. E cancelou o ensaio.

Resumindo: um dos mais inusitados – e carinhosos – duetos da história da música brasileira aconteceu praticamente sem ensaio. E tudo transcorreu às mil maravilhas. Detalhe: provavelmente foi a única vez em que João Gilberto cantou em público sem o seu inseparável violão.




sábado, novembro 11, 2017

Inaugurando a série ‘Certas Canções’: Milton Nascimento


Já dizia o mestre Nelson Motta: “Tudo muda o tempo todo no mundo”. E, assim, após 225 postagens desde 2006, a série São Bonitas as Canções – cujo nome foi extraído de um verso de “Choro Bandido”, de Edu Lobo e Chico Buarque – passa a chamar Certas Canções, título da composição de Tunai e Milton Nascimento.

Faixa de Änïmä, de 1982 [no detalhe, a capa], no qual Bituca se encontrava no auge como intérprete, “Certas Canções” fala da identificação – e do deslumbramento – de um compositor diante da canção de outro autor: “Certas canções que ouço cabem tão dentro de mim / que perguntar carece: ‘Como não fui eu que fiz?’”.

Com seu refrão pungente e registro vocal estupendo, “Certas Canções” se tornou um clássico instantâneo do repertório de Milton Nascimento.




Da série ‘Fotos’: a estátua de Renato Russo


Finalmente tive a oportunidade de conhecer a estátua de Renato Russo, inaugurada em 2012 no bairro da Portuguesa, Ilha do Governador, onde o cantor viveu até os seis anos de idade. Criada em bronze sob encomenda da prefeitura do Rio pelo cartunista Ique, possui a altura do cantor (1,75m) e pesa 250 quilos. 

Uma homenagem mais do que merecida ao líder da Legião Urbana.

terça-feira, agosto 22, 2017

Da série ‘São Bonitas as Canções’: ‘Bandeira’, de Zeca Baleiro



Zeca Baleiro iniciou sua carreira discográfica há exatamente 20 anos, com o álbum Por Onde Andará Stephen Fry? [no detalhe, a capa]. A primeira faixa de trabalho era a melancólica “Flor da Pele”, que logo obteve boa execução nas chamadas FMs adultas. A canção citava “Vapor Barato”, de Jards Macalé e Wally Salomão, imortalizada na voz de Gal Costa – e incluía um sampler da gravação original. Naquele mesmo ano, Gal convidou Baleiro para participar de seu Acústico MTV. Juntos, interpretaram justamente a dobradinha “Vapor Barato / Flor da Pele”.

A segunda faixa de trabalho do disco de estreia do maranhense foi “Bandeira”. A exemplo da antecessora, rapidamente se destacou na programação das rádios da época – e foi inserida na trilha da novela Por Amor. Com sua voz peculiar, Baleiro expunha, com uma entonação serena – e o precioso acompanhamento de um acordeon –, imagens contundentes: “Eu não quero ver você cuspindo ódio / eu não quero ver você fumando ópio / para sarar a dor. / Eu não quero ver você chorar veneno”.

Na verdade, a letra de “Bandeira” dialoga com “Belo Belo II”, de Manuel Bandeira. Tanto o poema quanto a canção frisam tudo o que os seus respectivos autores desejam ou não. O refrão, inclusive, cita o verso final da poesia: “Vida, noves fora, zero”. E não por acaso, o título da música é justamente o sobrenome do poeta pernambucano.

Baleiro foi muito feliz na escolha de metáforas como a do “braço da Vênus de Milo acenando ‘tchau’” – a estátua foi encontrada sem os braços em 1820 na ilha grega que passou a lhe emprestar o nome – e do rio Tejo “escorrendo pelas mãos”. O desfecho não poderia mais esperançoso – e tocante: “Se é assim, quero, sim / acho que vim para te ver”. 

Zeca Baleiro editou mais dez álbuns solo, todos elogiados por público e crítica. Contudo, para muita gente, “Bandeira” continua sendo a sua obra-prima.



Veja o vídeo oficial de “Bandeira”. A canção estava sendo trabalhada nas rádios quando o meu pai faleceu – hoje completam exatas duas décadas. Por esse motivo – e por alguns trechos da letra –, marcou para sempre um dos períodos mais tristes de minha vida. E me fez compreender, na prática, o que é “passar agosto esperando setembro”:

sexta-feira, agosto 18, 2017

Robert Plant: novo álbum a caminho


Dois dias após ter publicado um misterioso teaser em suas redes sociais, Robert Plant revelou mais detalhes sobre o seu novo projeto.

Batizado de Carry Fire [no detalhe, a capa], o 11º disco solo do ex-cantor do Led Zeppelin terá 11 faixas e, a exemplo do antecessor, o bom Lullaby And… The Ceaseless Roar [2014], foi gravado na companhia do grupo Sensational Space Shifters. Chrissie Hynde, vocalista do Pretenders, participa da ancestral “Bluebirds Over The Mountain”, gravada anteriormente por Richie “La Bamba” Valens e também pelos Beach Boys.

A primeira música de trabalho — já disponível nos serviços de streaming — é a inédita “The May Queen”, que apresenta uma mistura inusitada de folk com sonoridades orientais, bem ao estilo da banda que o acompanha. No hemisfério norte, “Rainha de Maio” é a figura que personifica o verão.

Carry Fire será lançado mundialmente no dia 13 de outubro. E Robert Plant inicia a sua turnê pelo Reino Unido no logo no mês seguinte.


Lista de faixas:

The May Queen
New World…
Season’s Song
Dance With You Tonight
Carving Up The World Again (A Wall and Not a Fence)
A Way With Words
Carry Fire
Bones Of Saints
Keep It Hid
Bluebirds Over The Mountain
Heaven Sent



Veja o lyric video de “The May Queen:

Da série ‘Frases’: Robert Plant


Em breve, precisarei de ajuda para atravessar a rua e você vem me falar de Led Zeppelin?


(Em entrevista concedida à revista americana Rolling Stone em 2011, Robert Plant expôs, um tanto contrariado, o que pensa sobre a volta de sua antiga banda.)

quinta-feira, agosto 17, 2017

Da série ‘Causos’: ‘That's The Way It Is’, de Elvis Presley


Sempre que penso em Elvis Presley — cujo falecimento completou ontem exatos 40 anos —, inevitavelmente lembro do ótimo That's The Way It Is [1970], trilha sonora do documentário homônimo, batizado no Brasil de Elvis É Assim. Explico.

Quando o Rei do Rock morreu, eu sequer havia chegado na idade escolar. Mesmo assim, não fiquei imune à comoção que tomou conta dos meios de comunicação naquele momento. Ao lado de Roberto Carlos, Elvis instantaneamente se tornou o meu primeiro ídolo. E minha mãe, embevecida com o fascínio do filho tão pequeno pelo cantor, me deu de presente o álbum supracitado. Muito provavelmente aquele foi o meu primeiro disco.

A despeito da pouca idade, logo percebi que tinha um biscoito fino nas mãos. E rapidamente escolhi as minhas preferidas: a arrasadora versão de “You've Lost That Lovin' Feeling”, do produtor Phil Spector (uma das faixas mais tocadas durante a cobertura do funeral do artista), “You Don't Have To Say You Love Me”, além de “Bridge Over Troubled Waters”, pérola de Paul Simon. Sem esquecer, claro, “I Just Can't Help Believin'”, que abre maravilhosamente os trabalhos.

Mas, infelizmente, tudo passa. Em uma ensolarada tarde de sábado, recebemos a visita de uma tia, irmã de minha mãe. Inadvertidamente, eu havia deixado o disco em uma cadeira. Distraída, ela sentou em cima dele, estilhaçando-o. Embora não tenha chorado, não consegui disfarçar minha desolação. Ela percebeu e tentou me consolar: “Oh, não fique triste… A tia vai anotar o nome e comprar um novo para você, está bem?”

Estou esperando até hoje. Felizmente, com o advento do CD, foi lançada uma edição Deluxe. De qualquer forma, ainda guardo a capa vazia do vinil como recordação.


***


Por sorte, meu padrinho, também irmão de minha mãe, sempre foi fá ardoroso do Elvis. E, pouco tempo depois, provavelmente sensibilizado pelo pequeno incidente, tirou de sua coleção a coletânea Disco de Ouro [à esquerda, a capa] e me presenteou. Imediatamente, a bolacha começar a tocar até furar na minha estimada vitrolinha. 

Mas isso é assunto para outra postagem.



Veja o vídeo da infalível “I Just Can't Help Believin'”. Como diria uma obscura canção de Luiz Melodia: “Porque quando um rei diz que é rei / é rei:

sexta-feira, agosto 04, 2017

Da série ‘Causos’: Luiz Melodia (1951 – 2017)


Sempre nutri grande respeito pelo trabalho de Luiz Melodia, falecido hoje, aos 66 anos. Em mais de quatro décadas de carreira discográfica, foi o autor de canções importantes da música brasileira como “Estácio Holly Estácio”, “Magrelinha”, “Juventude Transviada” e, claro, “Pérola Negra” (sucesso na voz de Gal Costa), entre outras. Mas a grande verdade é que, como pessoa, Melodia, infelizmente, não me deixa boas recordações.

Há cerca de dez anos, dirigi-me a um luthier situado na Praça Tiradentes, Centro do Rio, para pedir uma informação. Após subir a enorme escadaria do antigo sobrado, aproximei-me do balcão para esperar o atendimento. De imediato, notei que o homem alto e magro à minha esquerda, acompanhado presumivelmente da esposa, lançou um olhar para mim: era Melodia. 

Sorridente, cumprimentei-o em voz baixa: “Luiz Melodia, boa tarde”. Por alguma razão que até hoje não consigo compreender, ele sentiu-se, pasmem, desconfortável com o cumprimento. E, para meu espanto, colocou-se à esquerda da jovem senhora que o acompanhava, no intuito de se afastar.

Desapontado, esperei que um funcionário do estabelecimento me atendesse, tirei a dúvida que precisava, agradeci e me retirei. Assim que virei as costas, percebi que Melodia me observava. Mas não olhei para ele novamente.

Enquanto caminhava, lembrei de uma entrevista que o cantor concedeu, em 1996, ao Barão Vermelho, na extinta revista Bizz. Na ocasião, a banda carioca havia acabado de lançar Álbum, com regravações de Ângela Rô Rô (“Amor, Meu Grande Amor”), Gang 90 (“Perdidos na Selva”) e do próprio Melodia (“Vale Quanto Pesa”), entre outros. Em um determinado trecho da conversa, ele disparou: “Sempre digo para os artistas que me regravam que pego o CD deles e ouço só a minha música”. Após o lamentável episódio do luthier, concluí que ele provavelmente não estava brincando com o grupo.

Neste dia, reforcei a minha convicção de que, como seres humanos, artistas podem ser muito diferentes da imagem pública que constroem. E, com a minha dificuldade em “separar a pessoa Física da Jurídica”, confesso que, desde então, nunca mais consegui ouvir um disco dele.

Todavia, apesar de tudo, lamento sinceramente a sua partida. Descanse em paz.


sábado, maio 20, 2017

Da série ‘Frases’: ‘Guardar’, de Antonio Cícero



GUARDAR

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, 
fitá-la, 
mirá-la por admirá-la — 
isto é, iluminá-la 
ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, 
isto é, fazer vigília por ela, 
isto é, velar por ela, 
isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela 
ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, 
por isso se diz, 
por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema: 
para guardá-lo.
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
guarde o que quer que guarda um poema.
Por isso o lance do poema...

Por guardar-se o que se quer guardar.


(António Cícero, In.: Guardar: Poemas Escolhidos, 1996)



Veja a (excelente) interpretação de Fernanda Montenegro:


Da série ‘São Bonitas as Canções’: ‘Comeu’, com Magazine


Além de hits da década de 1980 como “Sou Boy” e “Tic-Tic Nervoso”, o extinto grupo Magazine — cujo vocalista era o pesquisador, radialista e apresentador de TV Kid Vinil — também é responsável pela melhor versão de “Comeu”, lançada originalmente pelo autor Caetano Veloso em álbum Velô [1984]. 

Em 1985, a regravação do Magazine alcançou projeção nacional através da abertura da novela A Gata Comeu.

R.I.P. Kid Vinil



Da série ‘Frases’: Santo Agostinho


“A morte não é nada —
somente passei para o outro lado do Caminho.
Eu sou eu; vocês são vocês;
O que eu era para vocês continuarei sendo.

Me deem o nome que vocês sempre me deram.
Falem comigo como vocês sempre fizeram.

Vocês continuam vivendo no mundo das criaturas;
Eu estou vivendo no mundo do Criador.

Não utilizem um tom solene ou triste. 
Continuem a rir daquilo que nos fazia rir juntos.
Rezem, 
sorriam, 
pensem em mim.
Rezem por mim.

Que meu nome seja pronunciado como sempre foi,
sem ênfase de nenhum tipo.
Sem nenhum traço de sombra ou tristeza.

A vida significa tudo o que sempre significou.
O fio não foi cortado.
Por que eu estaria fora de seus pensamentos
agora que estou apenas fora de suas vistas?

Não estou longe —
apenas estou do outro lado do Caminho.
Você que aí ficou, siga em frente.
A vida continua, linda e bela...

Como sempre foi.”


(Santo Agostinho de Hipona, 354 d.C — 430 d.C)


segunda-feira, abril 24, 2017

Da série ‘Causos’: Jerry Adriani (1947 – 2017)


Em um meio artístico dominado pelo egocentrismo e pela antipatia, é fundamental destacar que não há ninguém que, em algum momento, tenha criticado o comportamento de Jerry Adriani, falecido ontem, aos 70 anos. Carinhoso com os colegas e afável com os fãs, foi, ao longo de 53 anos de carreira, um exemplo de caráter e humildade. Um autêntico boa-praça. Uma pessoa do bem. Um espírito elevado.

Existe, aliás, um episódio envolvendo Jerry que é sempre relembrado pelos meus familiares. Há décadas, meu avô paterno dirigia na companhia de minha avó por uma das principais ruas da zona norte do Rio. E, em um determinado momento, levou uma baita “fechada”.

Ainda sem se refazer completamente do susto, ele observou que o autor da imprudência começou a reduzir a velocidade. Quando os dois veículos emparelharam, o motorista se desculpou pelo ocorrido e fez questão de perguntar se estava tudo bem. Era Jerry Adriani em pessoa.

A ele, todo o nosso respeito e admiração. E não apenas como artista, mas, principalmente, como ser humano. Descanse em paz.



Quando a Legião Urbana gravou o seu primeiro álbum, em 1984, o público e a crítica perceberam a (inegável) semelhança entre as vozes de Jerry Adriani e Renato Russo. Em 1999, Jerry homenageou Renato – que falecera três anos antes – com o (belo) álbum Forza Sempre, no regravou sucessos da Legião vertidos para o italiano:

sexta-feira, abril 21, 2017

Da série ‘São Bonitas as Canções’: ‘Holy Mother’, de Eric Clapton


Há exatamente um ano, no dia do falecimento de Prince, Eric Clapton publicou um depoimento emocionado em sua página no Facebook:

— Estou tão triste pela morte de Prince. Ele foi um verdadeiro gênio e uma inspiração, de um modo muito real. Nos anos 1980, quando eu estava na estrada caindo em uma espiral de bebidas e drogas, vi Purple Rain em um cinema do Canadá. Não tinha ideia de quem era, e ele caiu como um raio. (...) No meio da minha depressão e da situação horrorosa da música e da cultura naquela época, o filme me deu esperança. Foi como uma luz na escuridão. Voltei ao meu hotel e, cercado por latas vazias de cerveja, escrevi “Holy Mother”. Não acredito que ele se foi.

Lançada originalmente no álbum August, de 1986, “Holy Mother” é uma oração a Nossa Senhora e foi finalizada em parceria com Stephen Bishop, conhecido pela balada “It Might Be You”. Bishop conta que foi convidado para cerimônia do segundo casamento de Phil Collins, em 1984, e pernoitou no castelo onde Clapton vivia com a sua então esposa Pattie Boyd. Durante a estadia, o guitarrista perguntou se ele gostaria de trabalhar em uma faixa que ele havia começado a compor. Bishop aceitou. O resto é história. 



Na companhia do próprio Clapton, o tenor Luciano Pavarotti regravou a canção no álbum Pavarotti & Friends for War Child, de 1996:

sábado, abril 01, 2017

Urbana Legion lança letra inédita de Renato Russo


Single
Apóstolo São João
2017



No dia em que Renato Russo, falecido em 1996, completaria 57 anos, seus fãs receberam uma grata surpresa. “Apóstolo São João”, letra inédita do músico, vem à luz do dia pelas mãos da Urbana Legion, banda cover da Legião Urbana formada em 2014. A faixa é um dos cinco manuscritos que o quarteto recebeu de Giuliano Manfredini, filho de Renato.

O rascunho não tinha data. Contudo, pelas referências bíblicas (“Números, Romanos, Atos e Juízes / Êxodo e Provérbios / o Apocalipse do Apóstolo São João”), presume-se que foi escrito no período de As Quatro Estações [1989], quarto álbum da Legião. A faixa não se compara a clássicos como “Tempo Perdido” ou “Índios”. No entanto, o grupo acertou em musicar a letra respeitando o estilo da Legião. Ponto para eles.

O vídeo, por sua vez, tem um detalhe que pode emocionar os “órfãos” de Renato: foi gravado no apartamento do músico, na rua Nascimento Silva, 378, Ipanema, que permaneceu fechado durante os últimos... 20 anos (!).

As outras quatro letras inéditas do líder da Legião Urbana estão sendo musicadas e serão lançadas em single ao longo dos meses – podendo vir a compor um EP. 


Veja o vídeo de “Apóstolo São João:


quinta-feira, março 02, 2017

Danilo Caymmi: valeu a pena esperar


CD
Danilo Caymmi Canta Tom Jobim (Universal Music)
2017


Além da carreira solo iniciada em 1977 – ele é um dos autores dos sucessos “Andança” e “Casaco Marrom” –, Danilo Caymmi integrou a Banda Nova, que acompanhava Antonio Carlos Jobim, de 1983 a 1994 – quando o falecimento do Maestro Soberano encerrou as atividades do grupo. E, somente agora, 22 anos depois, Danilo considerou que o momento era apropriado para homenageá-lo. Assim surgiu o ótimo Danilo Caymmi Canta Tom Jobim, que chega às lojas e serviços de streaming via Universal Music.

O filho caçula do mestre Dorival selecionou 11 canções “por critérios afetivos” – revela que viu, por exemplo, “Tema de Amor de Gabriela” sendo composta verso a verso. E, embora não tenha deixado de fora clássicos como “Água de Beber” e “Ela É Carioca”, também optou por reler faixas menos conhecidas como “As Praias Desertas” e “Chora Coração”. 

O clima do álbum é plácido, intimista, com arranjos ultraeconômicos nos quais o violão de nylon se mostra onipresente. Curiosamente, não há um único acorde executado por piano em todo o disco.

Danilo inicia os trabalhos com “Bonita Demais (Bonita)”, com a letra em português escrita por Vinícius de Moraes encontrada em 2005 na Fundação Casa de Rui Barbosa – a original em inglês de Jobim data de 1964. Em “Estrada do Sol”, parceria de Tom com Dolores Duran, o cantor recebe a companhia da americana Stacey Kent – cantando em bom português (!).

A única nota dissonante do repertório é o fox “Querida”, cuja versão original – lançada em Antonio Brasileiro [1994], último disco do autor de “Águas de Março” – é realmente imbatível. Danilo Caymmi Canta Tom Jobim encerra com a maravilhosa “Derradeira Primavera”, também com letra do Poetinha, não deixando nenhuma dúvida de que se trata de um tributo realizado por alguém “da família”. Valeu a pena esperar 22 anos.


Ouça “Estrada do Sol”, com participação de Stacey Kent:

Da série ‘Causos’: a introdução de ‘Samba do Avião’, por Jobim e Dorival Caymmi


Apesar de amigos e confidentes desde a década de 1960 – quando gravaram juntos o álbum Caymmi Visita Tom e Leva seus Filhos Nana, Dori e Danilo [1964] –, Antonio Carlos Jobim e Dorival Caymmi, ironicamente, nunca compuseram em parceria. A única exceção foi uma introdução do sucesso “Samba do Avião” criada por Dorival.

Certa vez, o autor de “Samba da Minha Terra” estava no apartamento de Tom e decidiu colocar letra no trecho final da melodia da canção lançada em 1962. Como mote, lembrou da saudação que a esposa, a cantora Stella Maris, escrevia em todas as cartas enviadas para o marido – que, à época, frequentava um centro espírita em Niterói: “Salve Deus e Thiago e Humaitá”.

Jobim completou mencionando o desconforto que sentia ao aterrissar no aeroporto do Galeão, que hoje leva o seu nome: “Ê, Xangô / vê se me ajuda a chegar”.

A primeira parte da introdução (em letras itálicas) foi composta por Caymmi. A segunda foi inteiramente criada por Tom:


Epa Rei 
Aroeira
Beira de Mar
Canoa
Salve Deus e Thiago e Humaitá.

Eta costão de pedra
Dos “home” brabo do mar
Ê, Xangô
Vê se me ajuda a chegar.”


Curiosamente, a versão de “Samba do Avião” com a introdução criada pela dupla só foi registrada em disco duas vezes: no CD póstumo (gravado em 1987 sob encomenda da Odebrecht, como brinde para os funcionários da empreiteira) Inédito [1995], de Tom Jobim (com vocal solo de Danilo Caymmi); e em Novas Bossas, editado por Milton Nascimento na companhia do Jobim Trio em 2008.



Veja o vídeo de “Samba do Avião” – com direito a introdução, claro:

quinta-feira, janeiro 26, 2017

Da série ‘Frases’: Antonio Carlos Jobim


Hoje em dia sou arrimo de família. Tudo é comigo: 'Papai, furou um pneu', 'vovô, eu estou chegando', etc. e tal.


(Chorei de rir com essa frase de Tom Jobim — justamente por me identificar tanto com ela. Chego a pensar que o problema é esse apelido...)


quarta-feira, janeiro 25, 2017

Antonio Carlos Jobim: 90 anos


A trajetória musical de Antonio Carlos Jobim é repleta de grandes feitos. Em 1964, participou — como pianista e autor de seis das oito faixas do disco de jazz mais vendido da História — o essencial Getz/Gilberto. Três anos depois, recebeu um convite para dividir um disco com ninguém menos do que Frank Sinatra — algo que The Voice nunca havia feito até então e que jamais voltou a fazer.

Jobim foi o grande responsável por tornar a música brasileira mundialmente conhecida: “Garota de Ipanema” é segunda faixa mais executada e regravada de todos os tempos — perdendo apenas para “Yesterday”, dos Beatles. Goste-se ou não dele, o seu papel histórico é incontestável.

Músico clássico por formação, trouxe refinamento à canção popular, criando pérolas que continuarão atravessando gerações como “Águas de Março”, “Wave”, “Desafinado”, “Chega de Saudade” e dezenas de outras. Não tenham dúvida: o Maestro Soberano é o mais importante músico brasileiro de sempre.

Falecido em 1994, aos 67 anos, Antonio Carlos Jobim completaria hoje 90 anos. E, em tempos tão empobrecidos culturalmente como os atuais, a sua imensurável obra precisa, mais do que nunca, ser (re)descoberta. E celebrada.




Em um dos mais belos anúncios já feitos, a Brahma promoveu, em 1991, um emocionante “reencontro” de Jobim com o seu maior parceiro, o poetinha Vinícius de Moraes, falecido em 1980. Vale a pena conferir: